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A mostrar mensagens de fevereiro, 2022

O ADN das nações

  Vivemos tão focados no curto prazo que nos esquecemos de fazer leituras transversais da nossa história, o que nos priva de uma certa sabedoria, tão importante para relativizarmos o momento presente ou, sobretudo, para não o estranharmos. A centralização e o paternalismo fazem parte do ADN português desde sempre, sendo que as poucas exceções vêm apenas confirmar a regra. Refira-se o exemplo de, na Idade Média, não termos assistido ao feudalismo (que dava, noutras geografias, amplos poderes aos senhores e foi enfraquecendo as casas reais), mas antes ao senhorialismo, pois quase sempre registámos uma forte centralização do poder real. Do mesmo modo, nas gestas quinhentistas, não foram os mercadores que se aventuraram mar adentro e por sua conta. Não, senhor. A magnífica frota lusitana partia a expensas da coroa, que arriscava, mas não sem retorno. Risco não é connosco, o povo, como também não é a iniciativa que o risco pressupõe, ou a responsabilidade pelos logros (ou mesmo pelos lo...

PORTUGAL MENOS DEMOCRÁTICO – SERÁ UMA SURPRESA?

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É do final do mês passado a apresentação do  Relatório Global sobre o Estado da Democracia , relativo a 2020. Com 158 países sob escrutínio em vários parâmetros, o Relatório revela que Portugal foi o único país da Europa Ocidental que registou uma queda em três dos parâmetros que medem a qualidade das democracias. A autoria do Relatório é do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Social (International IDEA), com sede em Estocolmo, que o realiza desde 1975. w a1.JPG w As áreas em que Portugal retrocedeu foram  a independência judicial ,  ausência de corrupção  e  igualdade perante a lei  – sendo o único país da Europa Ocidental que regista uma queda em três parâmetros de avaliação, e o país que evoluiu pior face a 2019. No acesso à justiça, a pontuação de Portugal é de apenas 0.71, contra 0.87 da Europa Ocidental; na independência judicial, a pontuação de Portugal é de 0.74, contra 0.78 na Europa Ocidental; na ausência de corrupção, a pontua...

PRODUTIVIDADE EM PORTUGAL: A QUADRATURA DO CÍRCULO

  Um dos enigmas do nosso país tem a ver com a ausência de relação entre produtividade e qualificação. A regra diz que uma maior produtividade corresponde a uma maior qualificação: as pessoas mais qualificadas produzem mais. Em Portugal isso não acontece. Um estudo da FFMS acabado de publicar (cuja  leitura  é muito recomendável) vem confirmar essa estranha realidade portuguesa: em 2000 havia 9% de licenciados e, no ano de 2020, há 30% de licenciados. No entanto, esse aumento de qualificação no mercado de trabalho não se refletiu no aumento da produtividade, sendo Portugal o 7º país da EU que gera menos riqueza por cada hora de trabalho (ver  aqui ). Em busca dos porquês deparamo-nos com empresas|instituições presas a metodologias obsoletas e a um elevado nível de rotinização. Encerradas em tarefas rotineiras, das quais aparentemente não conseguem sair, as pessoas perdem a capacidade de inovar, de crescer e de fazer crescer. Sem mais horizonte do que o de uma cadeia ...

CIDADÃOS ATENTOS, PRECISAM-SE

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Duas das técnicas de manipulação de informação mais comuns são a exploração do medo e a exploração da ignorância, em detrimento da racionalidade e da comunicação integral dos factos. Em matéria de pandemia temos assistido ao crescimento de ambas de uma forma preocupante, deixando as pessoas, as famílias e a sociedade à mercê de medidas avulsas e sem capacidade de crítica ou contestação. Faz-nos bem de vez em quando irmos às fontes primárias, sobretudo quando percebemos que os intermediários (porta-vozes e jornalistas) recorrentemente não o fazem, mostrando apenas um aspeto da realidade, distorcendo-a. Por exemplo, existe um  site oficial de vigilância da mortalidade em Portugal , que nos dá os números de óbitos em tempo real desde 2009. Ao dia em que escrevo este artigo, 22 de novembro de 2021, registaram-se em Portugal 334 óbitos, 319 referidos como morte natural, um como causa externa e 14 em investigação. Na mesma fonte oficial, à qual todos temos acesso, a mortalidade é referid...

SERMOS POBRES NÃO É INEVITÁVEL

  Dados: - Um em cada cinco portugueses é pobre, o que perfaz 1,7 milhões de pessoas. 30% dos pobres são trabalhadores ativos. ( Estudo  da Fundação Francisco Manuel dos Santos). - A carga fiscal portuguesa é demasiado alta tendo em conta o produto interno bruto (PIB) per capita nacional. (A conclusão é da OCDE, no relatório anual sobre política tributária.)   Enquanto o noticiário nos mostra diariamente casos de polícia que atravessam uma casta de aparentes intocáveis em vários setores da sociedade, continua o português médio a ser chamado a cobrir os imensos danos desses eleitos, entrando à bilheteira sem ter posto sequer o pé na sala de cinema. Estamos, os cidadãos, como os pais remediados que se esfolam pelos filhos malcriados, dando-lhes tudo o que não tiveram (como se isso fosse virtude) e pagando-lhes as contas que desavergonhadamente eles contraem em hotéis de cinco estrelas, onde eles próprios nunca ousaram entrar. Ocorre-nos a imagem de Saturno devorando o ...

Onde menos se espera, aí está Deus

  Por vezes Deus descontrola as nossas continuidades, provoca roturas, para que possamos crescer, destruir em nós uma ideia de Deus que é sempre redutora e substituí-la pela abertura à vida, onde Deus se encontra total e misteriosamente. É Ele, o seu espírito, que nos mostra o nosso nada e é a partir do nosso nada que podemos intuir e abrir-nos à imensidão de Deus, também nas suas criaturas, todas elas. O primeiro olhar do crente é um olhar de espanto e o segundo de veneração – por todo o mundo criado, sem exceção. A gratidão emerge como pano de fundo em todo o tempo que assim se transforma em tempo em Deus. Nele começa e nele acaba ou nele continua, porque Deus é ato puro e a nossa vida só nele se encontra e justifica. Fora Dele, nada. Ou vacuidade. Deixar-se envolver pela glória de Deus é apenas estar disponível para o perceber em tudo o que nos rodeia, abstendo-nos de rotular os acontecimentos de acordo com as nossas preferências. A preferência de Deus é o que vivemos, a preferê...

Transformados pela espera

  Das virtudes teologais, a esperança é talvez a mais invisível, incompreendida e, no nosso tempo, desprezada. Custa esperar. Esperar o quê e para quê? E como se espera?   Num tempo que promete tudo a curtíssimo prazo, a esperança cristã parece um adereço de velhos, um artifício em desuso e sem graça. O que está na moda são os passos frenéticos em direção a mil lugares, o tumulto interior deixando indecifrados tantos sinais, a agitação exterior buscando distrações, dispersando-se em deveres e implodindo em rotinas…   Num mundo que promete felicidades fáceis e à mão, correr atrás delas é o mote, invejando a correria dos outros que lá chegam primeiro. E, ali, compulsivamente gerar  likes  e  stories , já cá estive e sou o máximo, como se a felicidade fosse um puzzle de lugares de sonho ou de gente importante.   A espera pode então ser vista como o reduto dos pobres, aqueles que se permitem nadar no tempo porque o têm, submergindo e deixando de ouvir os r...

A (necessária) arte do encontro

  Os encontros revelam-nos sempre o nosso lugar no tempo e na história, desde que estejamos disponíveis para o movimento. Vamos para o encontro como somos e vamos como estamos. Muitas vezes estamos de ego tão exacerbado e de alma tão conturbada que apenas nos transportamos para os encontros, como caixas fechadas e vociferando impressões, sem nada ouvir e receber de quem nos rodeia. A autorreferencialidade retira-nos a capacidade de nos vermos a nós mesmos, pois só o sermos vistos por um outro nos devolve – naquele tempo e lugar – o peso e a medida do nosso ser. A teia de relações e de encontros (e nós em movimento) recria-nos e saímos reinventados em cada permuta, descobrindo em nós luzes que levávamos e não víamos, e dando nós, com o nosso olhar, vigor e alento ao que parecia adormecido. No tempo, vamos descrevendo interiormente esse peregrinar que parece tão óbvio, de substituir sonhos por experiências e estas a dar-nos, de forma encapotada ou nem por isso, o tom outonal de quem ...

O difícil não vem de Deus

  Bem sabe o Criador do que somos feitos, criaturas tão repetitivas no erro e tão errantes nos passos que é certo que não se nos pode pedir senão o básico. Mas ainda que não fosse pela nossa inépcia, é evidente que Deus tem preferência pela simplicidade como se não quisesse contar com o nosso brilhantismo para transmitir a Sua luz. Neste mês de outubro que marca, para os cristãos católicos, a última das aparições aos pastorinhos de Fátima, voltamos a deter-nos nesse “padrão” de Deus, que facilmente esquecemos: os instrumentos de Deus são sempre tremendamente desajustados em relação aos resultados. Em plena I Grande Guerra, ficaram aquelas três pequeníssimas almas de 10, 9 e 7 anos, incumbidas de convencer o mundo de que a paz se alcançaria com o terço na mão. Não só a paz pessoal, mas a paz do mundo inteiro: 12 minutos de uma oração singela, o que basta para tocar o coração de Deus. Tocá-Lo, consolá-Lo e mudar muitos corações. Com a simplicidade de tal pedido, Deus (aqui por interm...

A ideia de Deus

  Não é certo que quem nasça numa família de forte tradição religiosa esteja em melhores condições do que qualquer outra pessoa para desenvolver a componente espiritual e uma relação com o divino. Pode acontecer exatamente o inverso. Crescer com uma ideia de Deus pode levar-nos a cristalizá-la nos ritos, hábitos ou procedimentos que, a dada altura, são desajustados ou necessariamente superficiais, pois mudamos ao longo da vida, deixando para trás o que já não serve. O desajustamento da vida espiritual com o crescimento nos adolescentes expõe a desproporção entre as várias dimensões do nosso ser, como os  jeans  que ficam curtos e sem margem para mais utilização. Do mesmo modo, o que levamos da fé herdada pode começar a ser um autocolante cada vez mais solto, inapropriado, infantil e descabido. Porque Deus não é uma ideia, Deus é Pessoa. E toda a experiência religiosa nasce do encontro entre duas pessoas, divina e humana, em que o homem é revelado a si mesmo na profundidad...

Eros e Ágape: Confundidos sobre o amor

  Eros , o amor passional, e  ágape , o amor sacrificial, continuam em batalha campal nas nossas vidas, como se não fosse possível juntá-los à mesma mesa, que é como quem diz, assumi-los por inteiro e integrá-los a ambos no leque dos bons amigos. A confusão radica nas dualidades que somos propensos a fazer, dividindo o que está destinado a ser junto e atribuindo dísticos de “bom” e “mau” a realidades que se limitam a ser. Passa-se isso com a divisão maniqueia de corpo e alma (que está na base da confusão sobre o amor), atribuindo ao corpo (e aos seus impulsos e sensações) todos os males do mundo e à alma (e aos seus suspiros etéreos) toda a pureza do mundo. Arredar o corpo ou a alma do amor (também do amor de amizade) é desumanizar, porque, na nossa travessia terrena, só somos sendo corpo e alma conjuntamente. O Deus cristão fez o favor de nos deixar exemplos marcantes de como se vive plenamente assumindo-se por inteiro: Jesus era chamado de “glutão e beberrão, amigo de public...

Desamores, dores e redenção

Habituamo-nos a tudo na vida, até a ter a alma em frangalhos, cheia de dores, pisaduras, feridas novas e velhas, algumas ainda com sangue a jorrar. Como são dores na alma, não sabemos o que fazer com elas e vamo-las mascarando com distrações várias, pecúlios, alegrias breves e ilusões de felicidade, numa superficialidade tão mais evidente quanto mais fundo é o abismo que levamos dentro. São deste género as ofensas imperdoáveis, os rancores entranhados, o orgulho desdenhoso e implacável, as memórias graníticas que erguem muralhas intransponíveis dentro de nós. Como são os desrespeitos, os ostracismos, os aviltamentos, as animalidades e todas as formas de abusos. Como são todos os desamores. Nesse negro isolado e frio, vamos mirrando. Passam os minutos, os dias, os meses e os anos e o acumulado das dores vai-nos transformando em seres que carregam tanto passado que se tornam incapazes de viver o presente sem ser por referência a uma dor qualquer que aí resolva despertar. Podemos chamar a...

Viver é Cristo, morrer é lucro

Tantos milénios soma a humanidade e a morte continua envolta numa densa névoa, como se não fosse um dos poucos factos de que podemos estar certos enquanto vivemos, para os outros e para nós próprios. Estranhamente, a morbidez escura e em surdina com que se vive o momento da morte e os que se lhe seguem alastra para todos os ambientes, incluindo os cristãos, como se não houvesse forma de contornar o politicamente correto negro de cara, veste e alma. Mas há, há forma de mostrar a alegria da ressurreição quando morre um cristão, aquele que pôs em Cristo a razão da sua esperança. A morte de alguém que amamos, para além da dor, pode-nos revelar a inopinada dimensão do dom. Damo-nos conta, por exemplo, que o ser tem a capacidade de tocar de forma diferente cada pessoa a que se doa. Trata-se de um brilho para além do que julgamos possuir, e cuja posse percebemos ser terrivelmente redutora, como um encapsulamento indevido de um ser maior. Sermos criados à imagem e semelhança de Deus, nesse ter...

Do tudo ao nada – o caminho necessário

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  Ao longo da sua itinerância, os crentes podem apresentar-se diante de Deus de duas formas: com as mãos cheias de méritos, esforços e conquistas ou com as mãos simplesmente vazias. Na génese das duas atitudes estão corações ávidos e comprometidos com Deus; o que varia é o modo e o modo pode fazer muita diferença. Penso que em geral todos começamos com grandes ímpetos de “acumulação”. No princípio da nossa vida de fé há muito a fazer: ganhar virtudes e destruir vícios, desfazer-nos do que nos afasta de Deus, sentir as asas da libertação das antigas escravidões, ganhar hábitos de oração e de vida interior etc., etc. Todo um programa intensivo de renovação que encetamos com enorme afinco, como aquele “primeiro amor” de que nos fala S. João no Apocalipse (Ap 2: 1-17). Esse ímpeto inicial corresponde às conversões do coração, quando a fé tradicional cai por terra e dá lugar à fé pessoal, em efusões de luz e de graça que nos dão a certeza do Céu. Ou apenas quando não víamos e passámos a...

Por que estais com tanto medo, homens de pouca fé?

  O crescimento pessoal e da humanidade não se dão numa linha contínua, mas costumam acontecer abruptamente, com “saltos” que nos levam para o nível seguinte: verifica-se nas eras da história humana e acontece na vida de cada um de nós. Cada uma dessas etapas é normalmente precedida por crises, sofrimentos e, não raramente, confrontos decisivos. São os tempos dos labirintos e das escolhas difíceis – porque sabemos que, no que quer que escolhamos, outros caminhos ficam para trás. Para os crentes, esses são também os tempos dos extraordinários apelos de Deus, os chamamentos que nos cegam (de tão luminosos), mas que também nos amedrontam (de tão desajustados). Pois é no deserto que Deus nos fala ao coração (Oseias, 2:14-23). Há sempre luz e há sempre medo quando nos sentimos interpelados por Deus: a perceção da grandiosidade da empreitada, a par da incerteza total do caminho e da abrupta consciência das próprias limitações. E é assim que podemos ler os dias de hoje: uma enorme adversi...