Entre a Terra e o Céu
Todos os sistemas religiosos (e alguns filosóficos) apresentam a tensão entre o tempo presente (imperfeito) e o futuro (perfeito), revelando as fragilidades do tempo presente face à glória do tempo futuro.
Nessa tensão, os fiéis (de todas as religiões) foram e são acusados de contemporizar com as injustiças do tempo presente, as suas limitações e opressões. No caso dos cristãos, é como se a cruz de Cristo, a par da virtude teologal da Esperança, exigisse a impassibilidade secretamente mortificada perante muitos sofrimentos pessoais e sociais.
Nada mais errado. Ao encarnar, Cristo sobrenaturalizou toda a história, entrou nela e fez-nos entrar nela como seus irmãos divinizados.
Toda a realidade clama a glória de Deus – as pedras da calçada, a natureza inteira e todas as criaturas. Depois da vinda de Cristo, o reino de Deus está efetivamente próximo. Não se trata apenas de uma proximidade temporal (no entendimento de que, perante a eternidade, o tempo é nada). Trata-se, sim, de uma proximidade espacial – o Reino já está no meio de nós, está em nós.
Depois da vinda de Cristo, cada cristão é chamado a fazer, na medida das suas possibilidades, o Céu na Terra. O Céu resumido ao Amor – a melhor definição de Deus.
É verdade que seremos sempre imperfeitos, pobres criaturas buscando Deus às apalpadelas. Mas buscando-O, efetivamente. Imitando-O no amor, percebendo e ultrapassando os nossos egoísmos e abrindo-nos totalmente a Ele na pessoa dos nossos irmãos. Dando tudo, como Ele.
É verdade que a cruz de Cristo é sempre o caminho – mostrando-nos a medida do amor. E a virtude teologal da Esperança não é fuga do tempo presente e das suas agruras. É, sim, a certeza de que quem crê e quem ama como Deus, possui já o Céu e é capaz de o dar aos outros.
Não se pode negar que um sentido religioso mal-entendido pode conduzir à impassibilidade perante o injusto, perante o opressor. Mas o sentido religioso, depois de Cristo, deve conduzir antes ao desmascarar do injusto e, se possível, a acabar com a injustiça.
O sentido religioso deve conduzir sobretudo ao compromisso com os últimos – como Cristo em todas as ocasiões. Um compromisso sobre o qual nos possamos questionar diariamente e que afere se somos efetivamente cristãos, se seguimos os passos de Cristo.
Questionemos se e quando largámos tudo para ir ao encontro de alguém, com incómodo, na penumbra, no silêncio. Alguém pobre, anónimo e desvalido, doente, idoso, demente. Alguém que nos espera, alguém que é Cristo.
No caminho para o Natal, questionemo-nos se seríamos capazes, como foram os pastores e os magos, de ir ao encontro de um sinal, no escuro, no frio, no desconforto, num curral. E ajoelhar perante um recém-nascido desconhecido e paupérrimo, de pais sem casa nem amigos, no meio de animais.
O grande desafio do Natal traz em si toda a sabedoria do Cristão: tornar-nos capazes de O imitar no dom de si mesmo, se Ele nos der essa graça, e reconhecê-lo em cada criatura, procurando dar-lhe o Céu.
(Publicado no Sete Margens)
Comentários
Enviar um comentário